Tema: A Evolução da
Punição e a
Humanização do Direito Penal
Objetivos da Aula:
Compreender a crítica
aos suplícios e a busca por penas mais humanas no contexto do século XVIII.
Analisar as ideias de
reformadores como Beccaria e outros pensadores sobre a justiça penal.
Refletir sobre a
relação entre poder, punição e a dignidade humana.
Estrutura da Aula:
1. Introdução
Apresentação do tema: A
evolução da punição e a humanização do direito penal.
Contextualização
histórica: Breve explicação sobre o século XVIII e o surgimento das ideias
iluministas.
2. Leitura e Análise do
Texto
Leitura do trecho
selecionado: Os alunos devem ler o texto proposto, focando nas críticas aos
suplícios e na necessidade de um castigo mais humano.
Discussão em grupos:
Dividir a turma em pequenos grupos para discutir as seguintes questões:
Quais são os principais
argumentos contra os suplícios?
Como a visão do
"homem-limite" se opõe à prática tradicional de punição?
De que maneira a
crítica à tirania se relaciona com a proposta de penas mais moderadas?
3. Apresentação dos
Grupos
Cada grupo apresenta
suas conclusões para a turma.
Debate: Promover um
debate sobre as diferentes perspectivas apresentadas.
4. Reflexão Individual
Atividade escrita: Os
alunos devem escrever uma breve reflexão sobre como as ideias discutidas podem
ser aplicadas na atualidade. Perguntas orientadoras:
A justiça penal atual
respeita a dignidade humana?
Quais são os desafios
contemporâneos na aplicação de penas justas e humanas?
5. Conclusão
Síntese dos principais
pontos discutidos.
Encaminhamentos:
Sugestão de leitura complementar sobre o tema e a importância da filosofia do
direito na formação do jurista.
Avaliação:
Participação nas
discussões em grupo.
Qualidade da reflexão
escrita.
Recursos:
Texto base para
leitura.
Quadro branco para
anotações durante a discussão.
Materiais de apoio
sobre os reformadores do século XVIII.
Texto:
FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.
Petrópolis, 1987.
SEGUNDA
PARTE
CAPÍTULO
I
A PUNIÇÃO
GENERALIZADA
1.
Que
as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que a de morte só seja
imputada contra os culpados assassinos, e sejam abolidos os suplícios que
revoltem a humanidade. O protesto contra os suplícios é encontrado em toda
parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do
direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de doléances e
entre os legisladores das assembleias. É preciso punir de outro modo: eliminar
essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal
entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do
supliciado e do carrasco. O suplício tornou-se rapidamente intolerável.
Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso,
a sede de vingança e o “cruel prazer de punir”. Vergonhoso, considerado da
perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que
bendiga “o céu e seus juízes por quem parece abandonada”. Perigoso de qualquer
modo, pelo apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a
do povo. Como se o poder soberano não visse, nessa emulação de atrocidades, um
desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a “ver
correr sangue”, o povo aprende rápido que “só pode se vingar com sangue”. Nessas
cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas, percebem-se o choque e
a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado. Nessa
relação Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder
absoluto: o carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo; a morte que
ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São Petersburgo
por cima dos pântanos e das pestes: ela é princípio de universalidade; da
vontade singular do déspota, ela faz uma lei para todos, e de cada um desses
corpos destruídos, uma pedra para o Estado; que importa que atinja inocentes!
Nessa mesma violência, ritual e dependente do caso, os reformadores do século
XVIII denunciaram, ao contrário, o que excede, de um lado e de outro, o
exercício legítimo do poder: a tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas
se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça criminal puna
em vez de se vingar.
2.
Essa
necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do
coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos
deve ser respeitada quando punimos: sua “humanidade”. Chegará o dia, no século
XIX, em que esse “homem”, descoberto no criminoso, se tornará o alvo da
intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio
de uma série de ciências e de práticas estranhas — “penitenciárias”,
“criminológicas”. Mas, nessa época das Luzes, não é como tema de um saber
positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas
como limite de direito, como fronteira legítima do poder de punir. Não o que
ela tem de atingir se quiser modificá-lo, mas o que ela deve deixar intato para
estar em condições de respeitá-lo. Noli me tangere. Marca o ponto de parada
imposto à vingança do soberano. O “homem” que os reformadores puseram em
destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das
coisas, mas do poder.
3.
O
problema, portanto, é: como esse homem-limite serviu de objeção à prática
tradicional dos castigos? De que maneira ele se tornou a grande justificação
moral do movimento de reforma? Por que esse horror tão unânime pelos suplícios
e tal insistência lírica por castigos que fossem “humanos”? Ou, o que dá no
mesmo, como se articulam um sobre o outro, numa única estratégia, esses dois
elementos sempre presentes na reivindicação de uma penalidade suavizada:
“medida” e “humanidade”? São esses elementos, tão necessários e, no entanto,
tão incertos, tão confusos e ainda tão associados na mesma relação duvidosa,
que encontramos hoje, sempre que abordamos o problema de uma economia dos
castigos. Tem-se a impressão de que o século XVIII abriu a crise dessa economia
e propôs para resolvê-la a lei fundamental de que o castigo deve ter a
“humanidade” como “medida”, sem poder dar um sentido definitivo considerado,
entretanto incontornável. É preciso então contar o nascimento e a primeira
história dessa enigmática “suavidade”.
4.
Glorificam-se
os grandes “reformadores” — Beccaria, Servan, Dupaty ou Lacretelle, Duport,
Pastoret, Target, Bergasse; os redatores dos Cahiers e os Constituintes — por
terem imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a teóricos “clássicos”
que, já no fim do século XVIII, a recusavam, e com um rigor argumentado.
5.
Temos,
entretanto, que recolocar essa reforma num processo que os historiadores
isolaram recentemente ao estudar os arquivos judiciários: o afrouxamento da
penalidade no decorrer do século XVIII, ou, de maneira mais precisa, o duplo
movimento pelo qual, durante esse período, os crimes parecem perder violência,
enquanto as punições, reciprocamente, reduzem em parte sua intensidade, mas à
custa de múltiplas intervenções. Desde o fim do século XVII, com efeito,
nota-se uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral,
das agressões físicas; os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre
os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos, os ferimentos
e golpes; a delinquência difusa, ocasional, mas frequente das classes mais
pobres é substituída por uma delinquência limitada e “hábil”; os criminosos do
século XVII são “homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e
pela cólera, criminosos de verão”; os do XVIII, “velhacos, espertos, matreiros
que calculam”, criminalidade de “marginais”; modifica-se enfim a organização
interna da delinquência: os grandes bandos de malfeitores (assaltantes formados
em pequenas unidades armadas, tropas de contrabandistas que faziam fogo contra
os agentes do Fisco, soldados licenciados ou desertores que vagabundeiam
juntos) tendem a se dissociar; mais bem caçados, sem dúvida, obrigados a se
fazer menores para passar despercebidos — não mais que um punhado de homens,
muitas vezes — contentam-se com operações mais furtivas, com menor demonstração
de forças e menores riscos de massacres.
6.
A
liquidação física ou o deslocamento institucional de grandes quadrilhas...
deixa, depois de 1755, o campo livre para urna delinquência antipropriedade que
agora se mostra individualista ou passa a ser exercida por grupos bem pequenos,
compostos de ladrões de capote ou batedores de carteira: em número não superior
a quatro pessoas.
7.
Um
movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio
mais ou menos direto dos bens; e da “criminalidade de massa” para uma
“criminalidade das bordas e margens”, reservada por um lado aos profissionais.
Tudo se passa como se tivesse havido uma baixa progressiva do nível das águas —
“um desarmamento das tensões que reinam nas relações humanas... um melhor
controle dos impulsos violentos” — e como se as práticas ilegais tivessem
afrouxado o cerco sobre o corpo e se tivessem dirigido a outros alvos.
Suavização dos crimes antes da suavização das leis. Ora, essa transformação não
pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base; e em primeiro
lugar, como nota P. Chaunu, de uma modificação no jogo das pressões econômicas,
de uma elevação geral do nível de vida, de um forte crescimento demográfico, de
uma multiplicação das riquezas e das propriedades e “da necessidade de
segurança que é uma consequência disso”. Além disso constata-se, no decorrer do
século XVIII, que a justiça se torna de certo modo mais pesada, e seus textos,
em vários pontos, agravam a severidade: na Inglaterra, dos 223 crimes capitais
que se encontravam definidos no começo do século XIX, 156 haviam sido durante
os últimos cem anos; na França a legislação sobre a vadiagem fora renovada e
agravada várias vezes desde o século XVII; um exercício mais apertado e mais
meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinquência que
antigamente ela deixava mais facilmente escapar:
8.
Ela
torna-se no século XVIII mais lenta, mais pesada, mais severa com o roubo, cuja
frequência relativa aumentou, e contra o qual toma agora ares burgueses de
justiça de classe;
9.
O
crescimento na França principalmente, mas mais ainda em Paris, de um aparelho
policial que impedia o desenvolvimento de uma criminalidade organizada e a céu
aberto, desloca-a para formas mais discretas. E a esse conjunto de precauções
deve-se acrescentar a crença, bastante generalizada, num aumento incessante e
perigoso dos crimes. Enquanto os historiadores de hoje constatam uma diminuição
das grandes quadrilhas de malfeitores, Le Trosne, por sua vez, os via
abater-se, como nuvens de gafanhotos, sobre todo o campo francês: “São insetos
vorazes que devastam diariamente a subsistência dos agricultores. São, para
falar claramente, tropas inimigas espalhadas pela superfície do território que
nele vivem à vontade, como num país conquistado, e retiram verdadeiras
contribuições a título de esmola”: custariam, para os camponeses mais pobres,
mais que o imposto direto (taille): pelo menos um terço onde o tributo é mais
alto. A maior parte dos observadores sustenta que a delinquência aumenta; é
claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam; afirmam-no também os
que pensam que uma justiça mais comedida em suas violências seria mais eficaz,
menos disposta a recuar por si mesma diante de suas próprias consequências;
afirmam-no os magistrados que pretendem que o número de processos é excessivo:
“a miséria do povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os
culpados”; mostra-o em todo caso a prática real dos tribunais.
10.
Já
é mesmo a era revolucionária e imperial que é anunciada pelos últimos anos do
Antigo Regime. Chamará a atenção, nos processos de 1782-1789, o aumento dos
perigos. Severidade em relação aos pobres, recusa combinada de testemunho,
aumento recíproco das desconfianças, dos ódios e medos.
11.
Na
verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de
fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento
da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das
relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento
mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de
captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma
extensão e de um afinamento das práticas punitivas.
12.
Será
uma transformação geral de atitude, uma “mudança que pertence ao campo do
espírito e da subconsciência”? Talvez. Com maior certeza e mais imediatamente,
porém, significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a
existência dos indivíduos: significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos
que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua
identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa uma
outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma
população representa. O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela
humanidade dos condenados — os suplícios ainda são frequentes, mesmo para os
crimes leves — quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais
inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social. De acordo
com um processo circular quando se eleva o limiar da passagem para os crimes
violentos, também aumenta a intolerância aos delitos econômicos, os controles
ficam mais rígidos, as intervenções penais se antecipam mais e tornam-se mais
numerosas.
13.
Ora,
se confrontamos esse processo com o discurso crítico dos reformadores, vemos
uma notável coincidência estratégica. Realmente, o que eles atacam na justiça
tradicional, antes de estabelecer os princípios de uma nova penalidade, é mesmo
o excesso de castigo, mas um excesso que está ainda mais ligado a uma
irregularidade que a um abuso do poder de punir. A 24 de março de 1790, Thouret
abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do poder judiciário.
Poder que, em sua opinião, está “desnaturado” de três maneiras na França. Por
uma apropriação privada: vendem-se os ofícios do juiz; transmitem-se por
herança; têm valor comercial e a justiça feita é, por isso, onerosa. Por uma
confusão entre dois tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença
aplicando a lei e o que faz a própria lei. Enfim pela existência de toda uma
série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça: há tribunais,
processos, partes litigantes, até delitos que são “privilegiados” e se situam
fora do direito comum. Isso não passa de uma das inúmeras formulações de
críticas velhas de pelo menos meio século e que denunciam, todas, nessa
desnaturação, o princípio de uma justiça irregular. A justiça penal é irregular
em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão encarregadas de
realizá-la, sem nunca constituir uma pirâmide única e contínua. Mesmo deixando
de lado as jurisdições religiosas, é necessário considerar as descontinuidades,
as sobreposições e os conflitos entre as diferentes justiças: as dos senhores
que são ainda importantes para a repressão dos pequenos delitos; as do rei que
são elas mesmas numerosas e mal coordenadas (as cortes soberanas estão em
constante conflito com os bailados [bailliages] e principalmente com os
tribunais presidiais [présidiaux] recentemente criados como instâncias
intermediárias); as que, de direito ou de fato, estão a cargo de instâncias
administrativas (como os intendentes) ou policiais (como os prebostes e os
chefes de polícia); a que se deveria ainda acrescentar o direito que tem o rei
ou seus representantes de tomar decisões de internamento ou de exílio fora de
qualquer procedimento regular. Essas instâncias múltiplas, por sua própria superabundância,
se neutralizam e são incapazes de cobrir o corpo social em toda a sua extensão.
A confusão torna essa justiça penal paradoxalmente lacunosa. Lacunosa devido às
diferenças de costumes e de procedimentos, apesar da Ordenação Geral de 1670;
lacunosa pelos conflitos internos de competência; lacunosa pelos interesses
particulares — políticos ou econômicos — que a cada instante é levada a
defender; lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir
o curso regular e austero da justiça, pelos perdões, comutações, evocações em
conselho ou pressões diretas sobre os magistrados.
14.
A
má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da
crítica dos reformadores. Poder excessivo nas jurisdições inferiores que podem
— ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados — negligenciar as
apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias;
poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios
de prosseguir, enquanto que o acusado está desarmado diante dela, o que leva os
juízes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes
demais; poder excessivo para os juízes que podem se contentar com provas fúteis
se são “legais” e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da
pena; poder excessivo dado à “gente do rei”, não só em relação aos acusados,
mas também aos outros magistrados; poder excessivo enfim exercido pelo rei,
pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os
magistrados, revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão
real. A paralisia da justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma
distribuição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de
pontos e aos conflitos e descontinuidades que daí resultam.
15.
Ora,
essa disfunção do poder provém de um excesso central: o que se poderia chamar o
“superpoder” monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal
do soberano. Identificação teórica que faz do rei a fons justitiae; mas cujas consequências
práticas são verificáveis até no que parece se opor a ele e limitar seu
absolutismo. É porque o rei, por razões de tesouraria, se arroga o direito de
vender ofícios de justiça que lhe “pertencem” que ele tem diante de si
magistrados, proprietários de seus cargos, não só indóceis, mas ignorantes,
interesseiros, prontos ao compromisso. É porque cria constantemente novos
ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição. É porque
exerce um poder muito rigoroso sobre sua “gente” e lhes confere um poder quase
discricionário que ele intensifica os conflitos na magistratura. É por ter
posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência
(jurisdições dos prebostes ou dos chefes de polícia) ou com medidas
administrativas, que ele paralisa a justiça regular, que a torna às vezes
indulgente e incerta, mas às vezes precipitada e severa.
16.
Não
são tanto, ou não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua
arrogância arcaica, seus direitos sem controle que são criticados; mas antes a
mistura entre suas fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas
lacunas, e sobretudo o próprio princípio dessa mistura, o superpoder
monárquico. O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas formulações
mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios
mais equitativos; mas estabelecer uma nova “economia” do poder de castigar,
assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado
demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias
que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser
exercidos em toda parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo
social. A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o
remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que o tornam mais
regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos;
enfim, que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja,
dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e vendas, da venalidade
tanto dos ofícios quanto das próprias decisões) e seu custo político
(dissociando-o do arbitrário do poder monárquico). A nova teoria jurídica da
penalidade engloba na realidade uma nova “economia política” do poder de punir.
Compreende-se então por que essa “reforma” não teve um ponto de origem único.
Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça, nem os filósofos
inimigos do despotismo e amigos da humanidade, não foram nem os grupos sociais
opostos aos parlamentares que suscitaram a reforma. Ou antes, não foram só
eles; no mesmo projeto global de uma nova distribuição do poder de punir e de
uma nova repartição de seus efeitos, vêm encontrar seu lugar muitos interesses
diferentes. A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra
todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de dentro, por um
grande número de magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos
conflitos de poder que os opunham uns aos outros. Os reformadores não eram a
maioria, entre os magistrados, naturalmente: mas foram legistas que idearam os
princípios gerais da reforma: um poder de julgar sobre o qual não pesasse o
exercício imediato da soberania do príncipe; que fosse independente da
pretensão de legislar; que não tivesse ligação com as relações de propriedade;
e que, tendo apenas as funções de julgar, exerceria plenamente esse poder. Em
uma palavra, fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios
múltiplos, descontínuos, contraditórias da soberania às vezes, mas de efeitos
continuamente distribuídos do poder público. Esse princípio geral define uma
estratégia de conjunto que deu ensejo a muitos combates diferentes. Os de
filósofos como Voltaire e de publicistas como Brissot ou Marat; mas também os
de magistrados cujos interesses eram entretanto bem diversos: Le Trosne,
conselheiro no tribunal presidial de Orléans, e Lacretelle, advogado geral no
parlamento; Target que, com os parlamentos, se opõe à reforma de Maupeou; mas
também J.N. Moreau que sustenta o poder real contra os parlamentares; Servan e
Dupaty, magistrados um como o outro, mas em conflito com os colegas etc..
17. Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.
Mapa Conceitual:
1. Contexto Histórico
Segunda metade do
século XVIII
Movimento de Reforma
Penal
Crítica ao sistema de
punição tradicional
Reforma para penas mais
humanas e moderadas
2. Críticas aos
Suplícios
Suplícios (punições
físicas extremas)
Revolta da humanidade
Filósofos, teóricos do
direito, juristas, magistrados, parlamentares
Conflito entre soberano
e povo
Tirania e vingança
Crítica ao "cruel
prazer de punir"
3. Reformadores e
Pensadores
Beccaria, Servan,
Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse
Defesa da
"suavidade" nas punições
Castigo sem suplício
Respeito à
"humanidade" do criminoso
Limite ao poder
soberano de punir
a. Cesare Beccaria
Obra: "Dos Delitos
e das Penas" (1764)
Contribuição: Beccaria
foi um dos primeiros a criticar abertamente o sistema penal severo e arbitrário
de sua época. Ele defendeu a suavidade nas punições, argumentando que as penas
deveriam ser proporcionais ao delito cometido e que a função da punição deveria
ser dissuadir o crime, não aplicar sofrimento.
Exemplo: Beccaria se
opôs à tortura e à pena de morte, defendendo penas mais leves, como a privação
de liberdade, que respeitassem a humanidade do criminoso.
b. Servan, Dupaty e
Lacretelle
Contribuição: Estes
pensadores também foram influenciados pelas ideias humanitárias e iluministas
de Beccaria. Eles criticaram a aplicação de punições cruéis e desumanas.
Exemplo: Dupaty, por
exemplo, em seus escritos, defendeu a reforma das leis penais e a abolição de
práticas desumanas, como a tortura judicial, alinhando-se à ideia de limite ao
poder soberano de punir.
c. Duport, Pastoret e
Target
Contribuição: Esses
juristas e políticos franceses participaram ativamente do processo de reforma
do sistema penal durante a Revolução Francesa, inspirados pelas ideias de
Beccaria.
Exemplo: Eles
trabalharam para implementar leis que respeitassem os direitos dos acusados e
condenados, garantindo que as penas fossem justas e proporcionais. Por exemplo,
Target foi um dos advogados que defendeu a necessidade de uma justiça menos
brutal, enfatizando a ideia de castigo sem suplício.
d. Bergasse
Contribuição: Bergasse
foi um jurista e político que, embora não tenha sido tão central no debate
penal quanto os outros, compartilhou as preocupações sobre os abusos do poder
estatal na aplicação das penas.
Exemplo: Ele defendeu o princípio de que o poder soberano deveria ser limitado na sua capacidade de punir, assegurando que as leis penais fossem aplicadas com justiça e respeito aos direitos humanos.
4. Mudanças Sociais e Criminais
Redução da violência
nos crimes
Substituição por crimes
contra a propriedade
Evolução do perfil dos
criminosos
Diminuição dos crimes
de sangue
5. Nova Economia do
Poder Punitivo
Distribuição do poder
de punir
Dissociação do poder de
punir do soberano
Novo poder de julgar
Independência da
soberania do príncipe
Juízes com poder mais
regular e contínuo
6. Reforma da Justiça
Penal
Crítica ao excesso de
poder
Poder excessivo nas
jurisdições inferiores
Superpoder monárquico
Confusão e conflitos na
justiça penal
Necessidade de uma
distribuição mais homogênea e eficaz do poder de punir
7. Estratégia de
Reforma
Punir melhor, não menos
Inserção do poder de
punir no corpo social
Maior universalidade e
necessidade das punições
Função regular da
punição
Trechos que apresentam temas
e teses em Filosofia do Direito:
1. Crítica aos
Suplícios
"O suplício
tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo,
onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o 'cruel prazer de
punir'."
Tese: A crítica aos
suplícios é uma manifestação da busca por uma justiça que respeite a dignidade
humana e não se baseie na vingança.
2. A Necessidade de um
Castigo Humano
"É preciso punir
de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado;
esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do
povo."
Tese: A proposta de um
sistema penal que não se baseie na violência física, mas que busque a
reabilitação e a justiça.
3. O Homem como Limite
do Poder de Punir
"No pior dos
assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua
'humanidade'."
Tese: A dignidade
humana deve ser um limite para o exercício do poder punitivo, mesmo em casos de
crimes graves.
4. A Relação entre
Tirania e Revolta
"A tirania,
segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente."
Tese: A relação entre o
poder punitivo e a resistência popular, destacando a necessidade de um sistema
de justiça que não provoque revolta.
5. A Transformação da
Criminalidade
"Um movimento
global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou
menos direto dos bens."
Tese: A evolução da
criminalidade reflete mudanças sociais e econômicas, o que exige uma adaptação
das práticas punitivas.
6. A Crítica à Justiça
Tradicional
"O verdadeiro
objetivo da reforma... não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de
princípios mais equitativos; mas estabelecer uma nova 'economia' do poder de
castigar."
Tese: A reforma do
direito penal deve ser vista como uma estratégia para redistribuir o poder de
punir, tornando-o mais justo e eficaz.
7. A Importância da
Justiça Regular
"Fazer com que o
poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos,
contraditórios da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuídos
do poder público."
Tese: A necessidade de
um sistema judiciário que funcione de maneira regular e equitativa, sem a
influência de privilégios ou arbitrariedades.
8. A Humanidade como
Medida do Castigo
"É preciso então
contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática 'suavidade'."
Tese: A busca por penas
mais humanas e moderadas é uma evolução necessária no pensamento jurídico,
refletindo uma mudança de paradigma na forma como a sociedade vê a punição.
9. A Crítica ao Poder
Absoluto
"O que se poderia
chamar o 'superpoder' monárquico que identifica o direito de punir com o poder
pessoal do soberano."
Tese: A crítica ao
absolutismo e à concentração de poder no soberano é fundamental para entender a
necessidade de um sistema judicial mais equilibrado e independente.
10. A Justiça como
Reflexo da Sociedade
"A justiça se
torna de certo modo mais pesada, e seus textos, em vários pontos, agravam a
severidade."
Tese: A relação entre a
evolução da sociedade e a rigidez das leis penais, mostrando como as mudanças
sociais impactam a forma como a justiça é aplicada.
11. A Necessidade de
Reformas
"A reforma não foi
preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes; foi
preparada, e no essencial, de dentro."
Tese: As reformas no
direito penal muitas vezes surgem de dentro do sistema, indicando que mudanças
significativas podem ser impulsionadas por aqueles que atuam na prática
judicial.
12. A Distribuição do
Poder de Punir
"O verdadeiro
objetivo da reforma... assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que
não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados."
Tese: A necessidade de
uma distribuição equitativa do poder punitivo é essencial para evitar abusos e
garantir uma justiça mais justa.
13. A Evolução da
Delinquência
"Os criminosos do
século XVII são 'homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e
pela cólera', os do XVIII, 'velhacos, espertos, matreiros que calculam'."
Tese: A mudança na
natureza da criminalidade reflete transformações sociais e econômicas, exigindo
uma adaptação nas abordagens penais.
14. A Justiça e a
Segurança
"A necessidade de
segurança que é uma consequência disso."
Tese: A relação entre a
segurança pública e a aplicação da justiça, destacando como a percepção de
insegurança pode influenciar as políticas penais.
15. A Crítica à
Arbitrariedade
"A má economia do
poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos
reformadores."
Tese: A crítica à
arbitrariedade no sistema judicial é fundamental para a construção de um
direito penal mais justo e equitativo.
16. A Justiça como
Função Social
"Não punir menos,
mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com
mais universalidade e necessidade."
Tese: A ideia de que a
justiça deve ser uma função social que busca não apenas punir, mas também
reabilitar e reintegrar o indivíduo à sociedade.
17. A Função da Justiça
Penal
"A justiça
criminal puna em vez de se vingar."
Tese: A função da
justiça deve ser a de punir de forma justa e não como um ato de vingança,
enfatizando a necessidade de um sistema penal que busque a reabilitação.
18. A Humanidade como
Limite do Poder
"O 'homem' que os
reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um
homem-medida: não das coisas, mas do poder."
Tese: A dignidade
humana deve ser a medida do poder punitivo, estabelecendo limites éticos para a
aplicação da justiça.
19. A Crítica à Justiça
Irregular
"A justiça penal é
irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão
encarregadas de realizá-la."
Tese: A irregularidade
no sistema de justiça penal é um problema que deve ser abordado para garantir a
equidade e a eficácia das punições.
20. A Necessidade de
uma Justiça Coesa
"Fazer com que o
poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos,
contraditórios da soberania às vezes."
Tese: A necessidade de
um sistema judicial coeso e uniforme que não seja influenciado por privilégios
ou arbitrariedades.
21. A Evolução das
Práticas Judiciais
"A passagem de uma
criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um
mecanismo complexo."
Tese: A evolução das
práticas criminosas reflete mudanças sociais e econômicas, exigindo uma
adaptação nas abordagens judiciais.
22. A Justiça e a
Moralidade
"A crença,
bastante generalizada, num aumento incessante e perigoso dos crimes."
Tese: A percepção
pública sobre a criminalidade pode influenciar a moralidade e a severidade das
leis, destacando a necessidade de uma abordagem crítica.
23. O Papel dos
Reformadores
"Os reformadores
não eram a maioria, entre os magistrados, naturalmente: mas foram legistas que
idearam os princípios gerais da reforma."
Tese: A importância dos
reformadores na construção de um novo paradigma jurídico, mesmo que não sejam a
maioria, destaca a relevância das ideias inovadoras.
24. A Justiça como
Reflexo da Sociedade
"A transformação
não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base."
Tese: A justiça deve
ser vista como um reflexo das condições sociais e econômicas, e suas reformas
devem considerar esses contextos.
25. A Interdependência
entre Poder e Justiça
"A paralisia da
justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal
regulada do poder."
Tese: A
interdependência entre o poder e a justiça é crucial para entender as falhas do
sistema penal e a necessidade de reformas.