Aula 7 A Evolução da Punição e a Humanização do Direito Penal

Tema: A Evolução da Punição e a Humanização do Direito Penal

Data: 27/08/2024 

Objetivos da Aula:

Compreender a crítica aos suplícios e a busca por penas mais humanas no contexto do século XVIII.

Analisar as ideias de reformadores como Beccaria e outros pensadores sobre a justiça penal.

Refletir sobre a relação entre poder, punição e a dignidade humana.

 

Estrutura da Aula:

1. Introdução

Apresentação do tema: A evolução da punição e a humanização do direito penal.

Contextualização histórica: Breve explicação sobre o século XVIII e o surgimento das ideias iluministas.

2. Leitura e Análise do Texto

Leitura do trecho selecionado: Os alunos devem ler o texto proposto, focando nas críticas aos suplícios e na necessidade de um castigo mais humano.

Discussão em grupos: Dividir a turma em pequenos grupos para discutir as seguintes questões:

Quais são os principais argumentos contra os suplícios?

Como a visão do "homem-limite" se opõe à prática tradicional de punição?

De que maneira a crítica à tirania se relaciona com a proposta de penas mais moderadas?

3. Apresentação dos Grupos

Cada grupo apresenta suas conclusões para a turma.

Debate: Promover um debate sobre as diferentes perspectivas apresentadas.

4. Reflexão Individual

Atividade escrita: Os alunos devem escrever uma breve reflexão sobre como as ideias discutidas podem ser aplicadas na atualidade. Perguntas orientadoras:

A justiça penal atual respeita a dignidade humana?

Quais são os desafios contemporâneos na aplicação de penas justas e humanas?

5. Conclusão

Síntese dos principais pontos discutidos.

Encaminhamentos: Sugestão de leitura complementar sobre o tema e a importância da filosofia do direito na formação do jurista.

 

Avaliação:

Participação nas discussões em grupo.

Qualidade da reflexão escrita.

 

Recursos:

Texto base para leitura.

Quadro branco para anotações durante a discussão.

Materiais de apoio sobre os reformadores do século XVIII.

 

Texto:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, 1987.

 

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

A PUNIÇÃO GENERALIZADA

1. Que as penas sejam moderadas e proporcionais aos delitos, que a de morte só seja imputada contra os culpados assassinos, e sejam abolidos os suplícios que revoltem a humanidade. O protesto contra os suplícios é encontrado em toda parte na segunda metade do século XVIII: entre os filósofos e teóricos do direito; entre juristas, magistrados, parlamentares; nos chaiers de doléances e entre os legisladores das assembleias. É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo, por intermédio do supliciado e do carrasco. O suplício tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o “cruel prazer de punir”. Vergonhoso, considerado da perspectiva da vítima, reduzida ao desespero e da qual ainda se espera que bendiga “o céu e seus juízes por quem parece abandonada”. Perigoso de qualquer modo, pelo apoio que nele encontram, uma contra a outra, a violência do rei e a do povo. Como se o poder soberano não visse, nessa emulação de atrocidades, um desafio que ele mesmo lança e que poderá ser aceito um dia: acostumado a “ver correr sangue”, o povo aprende rápido que “só pode se vingar com sangue”. Nessas cerimônias que são objeto de tantas investidas adversas, percebem-se o choque e a desproporção entre a justiça armada e a cólera do povo ameaçado. Nessa relação Joseph de Maistre reconhecerá um dos mecanismos fundamentais do poder absoluto: o carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo; a morte que ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São Petersburgo por cima dos pântanos e das pestes: ela é princípio de universalidade; da vontade singular do déspota, ela faz uma lei para todos, e de cada um desses corpos destruídos, uma pedra para o Estado; que importa que atinja inocentes! Nessa mesma violência, ritual e dependente do caso, os reformadores do século XVIII denunciaram, ao contrário, o que excede, de um lado e de outro, o exercício legítimo do poder: a tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar.

2. Essa necessidade de um castigo sem suplício é formulada primeiro como um grito do coração ou da natureza indignada: no pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua “humanidade”. Chegará o dia, no século XIX, em que esse “homem”, descoberto no criminoso, se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas — “penitenciárias”, “criminológicas”. Mas, nessa época das Luzes, não é como tema de um saber positivo que o homem é posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, mas como limite de direito, como fronteira legítima do poder de punir. Não o que ela tem de atingir se quiser modificá-lo, mas o que ela deve deixar intato para estar em condições de respeitá-lo. Noli me tangere. Marca o ponto de parada imposto à vingança do soberano. O “homem” que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das coisas, mas do poder.

3. O problema, portanto, é: como esse homem-limite serviu de objeção à prática tradicional dos castigos? De que maneira ele se tornou a grande justificação moral do movimento de reforma? Por que esse horror tão unânime pelos suplícios e tal insistência lírica por castigos que fossem “humanos”? Ou, o que dá no mesmo, como se articulam um sobre o outro, numa única estratégia, esses dois elementos sempre presentes na reivindicação de uma penalidade suavizada: “medida” e “humanidade”? São esses elementos, tão necessários e, no entanto, tão incertos, tão confusos e ainda tão associados na mesma relação duvidosa, que encontramos hoje, sempre que abordamos o problema de uma economia dos castigos. Tem-se a impressão de que o século XVIII abriu a crise dessa economia e propôs para resolvê-la a lei fundamental de que o castigo deve ter a “humanidade” como “medida”, sem poder dar um sentido definitivo considerado, entretanto incontornável. É preciso então contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática “suavidade”.

4. Glorificam-se os grandes “reformadores” — Beccaria, Servan, Dupaty ou Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse; os redatores dos Cahiers e os Constituintes — por terem imposto essa suavidade a um aparato judiciário e a teóricos “clássicos” que, já no fim do século XVIII, a recusavam, e com um rigor argumentado.

5. Temos, entretanto, que recolocar essa reforma num processo que os historiadores isolaram recentemente ao estudar os arquivos judiciários: o afrouxamento da penalidade no decorrer do século XVIII, ou, de maneira mais precisa, o duplo movimento pelo qual, durante esse período, os crimes parecem perder violência, enquanto as punições, reciprocamente, reduzem em parte sua intensidade, mas à custa de múltiplas intervenções. Desde o fim do século XVII, com efeito, nota-se uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos, os ferimentos e golpes; a delinquência difusa, ocasional, mas frequente das classes mais pobres é substituída por uma delinquência limitada e “hábil”; os criminosos do século XVII são “homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera, criminosos de verão”; os do XVIII, “velhacos, espertos, matreiros que calculam”, criminalidade de “marginais”; modifica-se enfim a organização interna da delinquência: os grandes bandos de malfeitores (assaltantes formados em pequenas unidades armadas, tropas de contrabandistas que faziam fogo contra os agentes do Fisco, soldados licenciados ou desertores que vagabundeiam juntos) tendem a se dissociar; mais bem caçados, sem dúvida, obrigados a se fazer menores para passar despercebidos — não mais que um punhado de homens, muitas vezes — contentam-se com operações mais furtivas, com menor demonstração de forças e menores riscos de massacres.

6. A liquidação física ou o deslocamento institucional de grandes quadrilhas... deixa, depois de 1755, o campo livre para urna delinquência antipropriedade que agora se mostra individualista ou passa a ser exercida por grupos bem pequenos, compostos de ladrões de capote ou batedores de carteira: em número não superior a quatro pessoas.

7. Um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens; e da “criminalidade de massa” para uma “criminalidade das bordas e margens”, reservada por um lado aos profissionais. Tudo se passa como se tivesse havido uma baixa progressiva do nível das águas — “um desarmamento das tensões que reinam nas relações humanas... um melhor controle dos impulsos violentos” — e como se as práticas ilegais tivessem afrouxado o cerco sobre o corpo e se tivessem dirigido a outros alvos. Suavização dos crimes antes da suavização das leis. Ora, essa transformação não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base; e em primeiro lugar, como nota P. Chaunu, de uma modificação no jogo das pressões econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um forte crescimento demográfico, de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e “da necessidade de segurança que é uma consequência disso”. Além disso constata-se, no decorrer do século XVIII, que a justiça se torna de certo modo mais pesada, e seus textos, em vários pontos, agravam a severidade: na Inglaterra, dos 223 crimes capitais que se encontravam definidos no começo do século XIX, 156 haviam sido durante os últimos cem anos; na França a legislação sobre a vadiagem fora renovada e agravada várias vezes desde o século XVII; um exercício mais apertado e mais meticuloso da justiça tende a levar em conta toda uma pequena delinquência que antigamente ela deixava mais facilmente escapar:

8. Ela torna-se no século XVIII mais lenta, mais pesada, mais severa com o roubo, cuja frequência relativa aumentou, e contra o qual toma agora ares burgueses de justiça de classe;

9. O crescimento na França principalmente, mas mais ainda em Paris, de um aparelho policial que impedia o desenvolvimento de uma criminalidade organizada e a céu aberto, desloca-a para formas mais discretas. E a esse conjunto de precauções deve-se acrescentar a crença, bastante generalizada, num aumento incessante e perigoso dos crimes. Enquanto os historiadores de hoje constatam uma diminuição das grandes quadrilhas de malfeitores, Le Trosne, por sua vez, os via abater-se, como nuvens de gafanhotos, sobre todo o campo francês: “São insetos vorazes que devastam diariamente a subsistência dos agricultores. São, para falar claramente, tropas inimigas espalhadas pela superfície do território que nele vivem à vontade, como num país conquistado, e retiram verdadeiras contribuições a título de esmola”: custariam, para os camponeses mais pobres, mais que o imposto direto (taille): pelo menos um terço onde o tributo é mais alto. A maior parte dos observadores sustenta que a delinquência aumenta; é claro que os partidários de maior rigor é que o afirmam; afirmam-no também os que pensam que uma justiça mais comedida em suas violências seria mais eficaz, menos disposta a recuar por si mesma diante de suas próprias consequências; afirmam-no os magistrados que pretendem que o número de processos é excessivo: “a miséria do povo e a corrupção dos costumes multiplicaram os crimes e os culpados”; mostra-o em todo caso a prática real dos tribunais.

10.           Já é mesmo a era revolucionária e imperial que é anunciada pelos últimos anos do Antigo Regime. Chamará a atenção, nos processos de 1782-1789, o aumento dos perigos. Severidade em relação aos pobres, recusa combinada de testemunho, aumento recíproco das desconfianças, dos ódios e medos.

11.           Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas.

12.           Será uma transformação geral de atitude, uma “mudança que pertence ao campo do espírito e da subconsciência”? Talvez. Com maior certeza e mais imediatamente, porém, significa um esforço para ajustar os mecanismos de poder que enquadram a existência dos indivíduos: significa uma adaptação e harmonia dos instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa uma outra política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população representa. O que se vai definindo não é tanto um respeito novo pela humanidade dos condenados — os suplícios ainda são frequentes, mesmo para os crimes leves — quanto uma tendência para uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente para uma vigilância penal mais atenta do corpo social. De acordo com um processo circular quando se eleva o limiar da passagem para os crimes violentos, também aumenta a intolerância aos delitos econômicos, os controles ficam mais rígidos, as intervenções penais se antecipam mais e tornam-se mais numerosas.

13.           Ora, se confrontamos esse processo com o discurso crítico dos reformadores, vemos uma notável coincidência estratégica. Realmente, o que eles atacam na justiça tradicional, antes de estabelecer os princípios de uma nova penalidade, é mesmo o excesso de castigo, mas um excesso que está ainda mais ligado a uma irregularidade que a um abuso do poder de punir. A 24 de março de 1790, Thouret abre na Constituinte a discussão sobre a nova organização do poder judiciário. Poder que, em sua opinião, está “desnaturado” de três maneiras na França. Por uma apropriação privada: vendem-se os ofícios do juiz; transmitem-se por herança; têm valor comercial e a justiça feita é, por isso, onerosa. Por uma confusão entre dois tipos de poder: o que presta justiça e formula uma sentença aplicando a lei e o que faz a própria lei. Enfim pela existência de toda uma série de privilégios que tornam incerto o exercício da justiça: há tribunais, processos, partes litigantes, até delitos que são “privilegiados” e se situam fora do direito comum. Isso não passa de uma das inúmeras formulações de críticas velhas de pelo menos meio século e que denunciam, todas, nessa desnaturação, o princípio de uma justiça irregular. A justiça penal é irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão encarregadas de realizá-la, sem nunca constituir uma pirâmide única e contínua. Mesmo deixando de lado as jurisdições religiosas, é necessário considerar as descontinuidades, as sobreposições e os conflitos entre as diferentes justiças: as dos senhores que são ainda importantes para a repressão dos pequenos delitos; as do rei que são elas mesmas numerosas e mal coordenadas (as cortes soberanas estão em constante conflito com os bailados [bailliages] e principalmente com os tribunais presidiais [présidiaux] recentemente criados como instâncias intermediárias); as que, de direito ou de fato, estão a cargo de instâncias administrativas (como os intendentes) ou policiais (como os prebostes e os chefes de polícia); a que se deveria ainda acrescentar o direito que tem o rei ou seus representantes de tomar decisões de internamento ou de exílio fora de qualquer procedimento regular. Essas instâncias múltiplas, por sua própria superabundância, se neutralizam e são incapazes de cobrir o corpo social em toda a sua extensão. A confusão torna essa justiça penal paradoxalmente lacunosa. Lacunosa devido às diferenças de costumes e de procedimentos, apesar da Ordenação Geral de 1670; lacunosa pelos conflitos internos de competência; lacunosa pelos interesses particulares — políticos ou econômicos — que a cada instante é levada a defender; lacunosa enfim devido às intervenções do poder real que pode impedir o curso regular e austero da justiça, pelos perdões, comutações, evocações em conselho ou pressões diretas sobre os magistrados.

14.           A má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos reformadores. Poder excessivo nas jurisdições inferiores que podem — ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados — negligenciar as apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de prosseguir, enquanto que o acusado está desarmado diante dela, o que leva os juízes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação, indulgentes demais; poder excessivo para os juízes que podem se contentar com provas fúteis se são “legais” e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da pena; poder excessivo dado à “gente do rei”, não só em relação aos acusados, mas também aos outros magistrados; poder excessivo enfim exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real. A paralisia da justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder, a sua concentração em um certo número de pontos e aos conflitos e descontinuidades que daí resultam.

15.           Ora, essa disfunção do poder provém de um excesso central: o que se poderia chamar o “superpoder” monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano. Identificação teórica que faz do rei a fons justitiae; mas cujas consequências práticas são verificáveis até no que parece se opor a ele e limitar seu absolutismo. É porque o rei, por razões de tesouraria, se arroga o direito de vender ofícios de justiça que lhe “pertencem” que ele tem diante de si magistrados, proprietários de seus cargos, não só indóceis, mas ignorantes, interesseiros, prontos ao compromisso. É porque cria constantemente novos ofícios que ele multiplica os conflitos de poder e de atribuição. É porque exerce um poder muito rigoroso sobre sua “gente” e lhes confere um poder quase discricionário que ele intensifica os conflitos na magistratura. É por ter posto a justiça em concorrência com um excesso de procedimentos de urgência (jurisdições dos prebostes ou dos chefes de polícia) ou com medidas administrativas, que ele paralisa a justiça regular, que a torna às vezes indulgente e incerta, mas às vezes precipitada e severa.

16.           Não são tanto, ou não são só os privilégios da justiça, sua arbitrariedade, sua arrogância arcaica, seus direitos sem controle que são criticados; mas antes a mistura entre suas fraquezas e seus excessos, entre seus exageros e suas lacunas, e sobretudo o próprio princípio dessa mistura, o superpoder monárquico. O verdadeiro objetivo da reforma, e isso desde suas formulações mais gerais, não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais equitativos; mas estabelecer uma nova “economia” do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados, nem partilhado demais entre instâncias que se opõem; que seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social. A reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que o tornam mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos; enfim, que aumentem os efeitos diminuindo o custo econômico (ou seja, dissociando-o do sistema da propriedade, das compras e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das próprias decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário do poder monárquico). A nova teoria jurídica da penalidade engloba na realidade uma nova “economia política” do poder de punir. Compreende-se então por que essa “reforma” não teve um ponto de origem único. Não foram os mais esclarecidos dos expostos à ação da justiça, nem os filósofos inimigos do despotismo e amigos da humanidade, não foram nem os grupos sociais opostos aos parlamentares que suscitaram a reforma. Ou antes, não foram só eles; no mesmo projeto global de uma nova distribuição do poder de punir e de uma nova repartição de seus efeitos, vêm encontrar seu lugar muitos interesses diferentes. A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de dentro, por um grande número de magistrados e a partir de objetivos que lhes eram comuns e dos conflitos de poder que os opunham uns aos outros. Os reformadores não eram a maioria, entre os magistrados, naturalmente: mas foram legistas que idearam os princípios gerais da reforma: um poder de julgar sobre o qual não pesasse o exercício imediato da soberania do príncipe; que fosse independente da pretensão de legislar; que não tivesse ligação com as relações de propriedade; e que, tendo apenas as funções de julgar, exerceria plenamente esse poder. Em uma palavra, fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórias da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público. Esse princípio geral define uma estratégia de conjunto que deu ensejo a muitos combates diferentes. Os de filósofos como Voltaire e de publicistas como Brissot ou Marat; mas também os de magistrados cujos interesses eram entretanto bem diversos: Le Trosne, conselheiro no tribunal presidial de Orléans, e Lacretelle, advogado geral no parlamento; Target que, com os parlamentos, se opõe à reforma de Maupeou; mas também J.N. Moreau que sustenta o poder real contra os parlamentares; Servan e Dupaty, magistrados um como o outro, mas em conflito com os colegas etc..

17.           Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.

Mapa Conceitual:

1. Contexto Histórico

Segunda metade do século XVIII

Movimento de Reforma Penal

Crítica ao sistema de punição tradicional

Reforma para penas mais humanas e moderadas

2. Críticas aos Suplícios

Suplícios (punições físicas extremas)

Revolta da humanidade

Filósofos, teóricos do direito, juristas, magistrados, parlamentares

Conflito entre soberano e povo

Tirania e vingança

Crítica ao "cruel prazer de punir"

3. Reformadores e Pensadores

Beccaria, Servan, Dupaty, Lacretelle, Duport, Pastoret, Target, Bergasse

Defesa da "suavidade" nas punições

Castigo sem suplício

Respeito à "humanidade" do criminoso

Limite ao poder soberano de punir

a. Cesare Beccaria

Obra: "Dos Delitos e das Penas" (1764)

Contribuição: Beccaria foi um dos primeiros a criticar abertamente o sistema penal severo e arbitrário de sua época. Ele defendeu a suavidade nas punições, argumentando que as penas deveriam ser proporcionais ao delito cometido e que a função da punição deveria ser dissuadir o crime, não aplicar sofrimento.

Exemplo: Beccaria se opôs à tortura e à pena de morte, defendendo penas mais leves, como a privação de liberdade, que respeitassem a humanidade do criminoso.

b. Servan, Dupaty e Lacretelle

Contribuição: Estes pensadores também foram influenciados pelas ideias humanitárias e iluministas de Beccaria. Eles criticaram a aplicação de punições cruéis e desumanas.

Exemplo: Dupaty, por exemplo, em seus escritos, defendeu a reforma das leis penais e a abolição de práticas desumanas, como a tortura judicial, alinhando-se à ideia de limite ao poder soberano de punir.

c. Duport, Pastoret e Target

Contribuição: Esses juristas e políticos franceses participaram ativamente do processo de reforma do sistema penal durante a Revolução Francesa, inspirados pelas ideias de Beccaria.

Exemplo: Eles trabalharam para implementar leis que respeitassem os direitos dos acusados e condenados, garantindo que as penas fossem justas e proporcionais. Por exemplo, Target foi um dos advogados que defendeu a necessidade de uma justiça menos brutal, enfatizando a ideia de castigo sem suplício.

d. Bergasse

Contribuição: Bergasse foi um jurista e político que, embora não tenha sido tão central no debate penal quanto os outros, compartilhou as preocupações sobre os abusos do poder estatal na aplicação das penas.

Exemplo: Ele defendeu o princípio de que o poder soberano deveria ser limitado na sua capacidade de punir, assegurando que as leis penais fossem aplicadas com justiça e respeito aos direitos humanos.

4. Mudanças Sociais e Criminais

Redução da violência nos crimes

Substituição por crimes contra a propriedade

Evolução do perfil dos criminosos

Diminuição dos crimes de sangue

5. Nova Economia do Poder Punitivo

Distribuição do poder de punir

Dissociação do poder de punir do soberano

Novo poder de julgar

Independência da soberania do príncipe

Juízes com poder mais regular e contínuo

6. Reforma da Justiça Penal

Crítica ao excesso de poder

Poder excessivo nas jurisdições inferiores

Superpoder monárquico

Confusão e conflitos na justiça penal

Necessidade de uma distribuição mais homogênea e eficaz do poder de punir

7. Estratégia de Reforma

Punir melhor, não menos

Inserção do poder de punir no corpo social

Maior universalidade e necessidade das punições

Função regular da punição

 

Trechos que apresentam temas e teses em Filosofia do Direito:

1. Crítica aos Suplícios

"O suplício tornou-se rapidamente intolerável. Revoltante, visto da perspectiva do povo, onde ele revela a tirania, o excesso, a sede de vingança e o 'cruel prazer de punir'."

Tese: A crítica aos suplícios é uma manifestação da busca por uma justiça que respeite a dignidade humana e não se baseie na vingança.

 

2. A Necessidade de um Castigo Humano

"É preciso punir de outro modo: eliminar essa confrontação física entre soberano e condenado; esse conflito frontal entre a vingança do príncipe e a cólera contida do povo."

Tese: A proposta de um sistema penal que não se baseie na violência física, mas que busque a reabilitação e a justiça.

 

3. O Homem como Limite do Poder de Punir

"No pior dos assassinos, uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando punimos: sua 'humanidade'."

Tese: A dignidade humana deve ser um limite para o exercício do poder punitivo, mesmo em casos de crimes graves.

 

4. A Relação entre Tirania e Revolta

"A tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente."

Tese: A relação entre o poder punitivo e a resistência popular, destacando a necessidade de um sistema de justiça que não provoque revolta.

 

5. A Transformação da Criminalidade

"Um movimento global faz derivar a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio mais ou menos direto dos bens."

Tese: A evolução da criminalidade reflete mudanças sociais e econômicas, o que exige uma adaptação das práticas punitivas.

 

6. A Crítica à Justiça Tradicional

"O verdadeiro objetivo da reforma... não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios mais equitativos; mas estabelecer uma nova 'economia' do poder de castigar."

Tese: A reforma do direito penal deve ser vista como uma estratégia para redistribuir o poder de punir, tornando-o mais justo e eficaz.

 

7. A Importância da Justiça Regular

"Fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórios da soberania às vezes, mas de efeitos continuamente distribuídos do poder público."

Tese: A necessidade de um sistema judiciário que funcione de maneira regular e equitativa, sem a influência de privilégios ou arbitrariedades.

 

8. A Humanidade como Medida do Castigo

"É preciso então contar o nascimento e a primeira história dessa enigmática 'suavidade'."

Tese: A busca por penas mais humanas e moderadas é uma evolução necessária no pensamento jurídico, refletindo uma mudança de paradigma na forma como a sociedade vê a punição.

 

9. A Crítica ao Poder Absoluto

"O que se poderia chamar o 'superpoder' monárquico que identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano."

Tese: A crítica ao absolutismo e à concentração de poder no soberano é fundamental para entender a necessidade de um sistema judicial mais equilibrado e independente.

 

10. A Justiça como Reflexo da Sociedade

"A justiça se torna de certo modo mais pesada, e seus textos, em vários pontos, agravam a severidade."

Tese: A relação entre a evolução da sociedade e a rigidez das leis penais, mostrando como as mudanças sociais impactam a forma como a justiça é aplicada.

 

11. A Necessidade de Reformas

"A reforma não foi preparada fora do aparato judiciário e contra todos os seus representantes; foi preparada, e no essencial, de dentro."

Tese: As reformas no direito penal muitas vezes surgem de dentro do sistema, indicando que mudanças significativas podem ser impulsionadas por aqueles que atuam na prática judicial.

 

12. A Distribuição do Poder de Punir

"O verdadeiro objetivo da reforma... assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não fique concentrado demais em alguns pontos privilegiados."

Tese: A necessidade de uma distribuição equitativa do poder punitivo é essencial para evitar abusos e garantir uma justiça mais justa.

 

13. A Evolução da Delinquência

"Os criminosos do século XVII são 'homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera', os do XVIII, 'velhacos, espertos, matreiros que calculam'."

Tese: A mudança na natureza da criminalidade reflete transformações sociais e econômicas, exigindo uma adaptação nas abordagens penais.

 

14. A Justiça e a Segurança

"A necessidade de segurança que é uma consequência disso."

Tese: A relação entre a segurança pública e a aplicação da justiça, destacando como a percepção de insegurança pode influenciar as políticas penais.

 

15. A Crítica à Arbitrariedade

"A má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade é o que ressalta da crítica dos reformadores."

Tese: A crítica à arbitrariedade no sistema judicial é fundamental para a construção de um direito penal mais justo e equitativo.

 

16. A Justiça como Função Social

"Não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade."

Tese: A ideia de que a justiça deve ser uma função social que busca não apenas punir, mas também reabilitar e reintegrar o indivíduo à sociedade.

 

17. A Função da Justiça Penal

"A justiça criminal puna em vez de se vingar."

Tese: A função da justiça deve ser a de punir de forma justa e não como um ato de vingança, enfatizando a necessidade de um sistema penal que busque a reabilitação.

 

18. A Humanidade como Limite do Poder

"O 'homem' que os reformadores puseram em destaque contra o despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das coisas, mas do poder."

Tese: A dignidade humana deve ser a medida do poder punitivo, estabelecendo limites éticos para a aplicação da justiça.

 

19. A Crítica à Justiça Irregular

"A justiça penal é irregular em primeiro lugar pela multiplicidade das instâncias que estão encarregadas de realizá-la."

Tese: A irregularidade no sistema de justiça penal é um problema que deve ser abordado para garantir a equidade e a eficácia das punições.

 

20. A Necessidade de uma Justiça Coesa

"Fazer com que o poder de julgar não dependesse mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórios da soberania às vezes."

Tese: A necessidade de um sistema judicial coeso e uniforme que não seja influenciado por privilégios ou arbitrariedades.

 

21. A Evolução das Práticas Judiciais

"A passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo."

Tese: A evolução das práticas criminosas reflete mudanças sociais e econômicas, exigindo uma adaptação nas abordagens judiciais.

 

22. A Justiça e a Moralidade

"A crença, bastante generalizada, num aumento incessante e perigoso dos crimes."

Tese: A percepção pública sobre a criminalidade pode influenciar a moralidade e a severidade das leis, destacando a necessidade de uma abordagem crítica.

 

23. O Papel dos Reformadores

"Os reformadores não eram a maioria, entre os magistrados, naturalmente: mas foram legistas que idearam os princípios gerais da reforma."

Tese: A importância dos reformadores na construção de um novo paradigma jurídico, mesmo que não sejam a maioria, destaca a relevância das ideias inovadoras.

 

24. A Justiça como Reflexo da Sociedade

"A transformação não pode ser separada de vários processos que lhe armam uma base."

Tese: A justiça deve ser vista como um reflexo das condições sociais e econômicas, e suas reformas devem considerar esses contextos.

 

25. A Interdependência entre Poder e Justiça

"A paralisia da justiça está ligada menos a um enfraquecimento que a uma distribuição mal regulada do poder."

Tese: A interdependência entre o poder e a justiça é crucial para entender as falhas do sistema penal e a necessidade de reformas.